A regra básica do cinema do diretor Tony Scott, e da própria arte em si, é o movimento. Tudo precisa estar em deslocamento o tempo todo, como o trem desgovernado a 112 km/h que Denzel Washington e Chris Pine tentam controlar em Incontrolável (Unstoppable, 2010).O filme inspirado em um caso real de 2001, ocorrido em Ohio, é a quinta parceria de Denzel com Scott, depois deMaré Vermelha, Chamas da Vingança, Déjà Vu e O Sequestro do Metrô 1 2 3. Incontrolável está inscrito também em outra tradição particular de Scott, a dos filmes motorizados. Desde Top Gun e Dias de Trovão até os citados Maré Vermelha e O Sequestro do Metrô 1 2 3, os heróis do diretor se vêem em relação quase simbiótica com as máquinas.
Tudo age em função do movimento, e não há nada mais cinemático do que estabelecer um ponto de vista fixo em que o espectador possa se sentir "confortável" (a posição dos heróis-pilotos de Scott, seja o cockpit de um caça ou o passadiço de um submarino ou a cabine de um trem), enquanto a ação transcorre ao redor. Talvez seja uma leitura exagerada pensar que há metalinguagem nessa relação piloto-cockpit / espectador-poltrona, mas a obra de Scott sem dúvida a permite.
É por isso que Incontrolável tem, como nos melhores guilty pleasures, um inegável prazer em ser visto. Imaginar um trem atravessando cavalos ou crianças já é, em si, uma síntese do desfrute culposo - podemos jogar à vontade com o risco e com a iminência do acidente porque sabemos que, no fundo, não há risco algum de que um acidente desse tipo se efetive dentro dos limites morais da ficção.
Tony Scott resgata o conceito de filme-catástrofe dos anos 70, quando esse subgênero ainda sabia se divertir consigo mesmo e não tinha a megalomania dos apocalipses climáticos e espaciais de hoje em dia. Um prédio em chamas era desastre suficiente naquela época, e o diretor sabe que o porte do seu trem 777 - a única locomotiva vermelho-sangue no meio de uma frota azul e cinza - é o bastante para insinuar o flerte com a morte.A correção política transformou nossa relação com os filmes-catástrofe em uma sessão de terapia, quase um tribunal. Scott restitui a inocência da coisa - é por isso que o culpado pelo desastre em Incontrolável é um tipo caricato (o comediante Ethan Suplee). Aliás, o vilão da história, se é que dá pra chamar assim, o diretor da ferrovia, também é vivido por um ator obeso conhecido por papéis cômicos,Kevin Dunn. A ideia é não pesar a mão na vilanização (e todos os heróis têm os seus momentos de brilho).
Esvaziar o filme dessa espécie de julgamento permite que ele seja apreciado por suas características mais primárias (e aí voltamos à relação piloto-espectador) e deixa também que o trem roube todo o show. É uma pena que Incontrolável tenha sido eliminado do páreo no Oscar de melhores efeitos visuais. Com exceção da cena da curva, mal resolvida em sua computação gráfica, o resto dos efeitos no filme parece bem orgânico.O movimento constante ajuda a dar essa impressão de organicidade. Scott se excede às vezes nessa sua obsessão - nenhum enquadramento é só frontal ou estático, os close-ups em Chris Pine emulando o curso do trem se repetem a ponto de parecer reprises - mas não é nada que não se releve. Se o filme não julga seus personagens por que vamos nós condená-lo por esses pormenores?
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